23 de março de 2006

VII. A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE MAX WEBER


Introdução


O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) é um dos fundadores da sociologia. Suas idéias, que abarcavam assuntos múltiplos, da história econômica à sociologia da música, continuam a ser extremamente influentes. Em uma de suas obras mais conhecidas, Weber afirmou que havia um elo entre a emergência do protestantismo e a ascensão do capitalismo.

Weber foi um dos primeiros a atentar para a importância da burocracia, que analisava como uma forma de organização social ligada a um determinado tipo de poder institucionalizado pela tradição ou através de leis. A burocracia consiste numa hierarquia de cargos remunerados e claramente definidos, preenchidos por indivíduos livres, selecionados de acordo com seus méritos e capazes de ascender. Weber aprofundou também a análise da estratificação social, defendendo, por exemplo, que pertencer a uma classe poderia não depender apenas de critérios econômicos ou ocupacionais, mas também de outros atributos, enfatizando o papel do status (condição de reconhecimento ou prestígio social de que desfruta um grupo ou indivíduo) na desigualdade social.

De acordo com Weber, a sociologia deveria se preocupar com a interpretação e explicação do comportamento social abrindo mão do tipo de observação e descrição preconizado pelas abordagens influenciadas pelo positivismo de Comte. Weber preocupava-se com a responsabilidade social dos cientistas políticos e defendia a busca da neutralidade cientifica na vida acadêmica. As convicções pessoais não deveriam interferir na investigação e na análise. A principal obra sociológica de Weber é Economia e Sociedade, publicada postumamente (1922).


1. A ação social: uma ação com sentido

A forma de administração do Oriente, para Weber, era irracional. Os funcionários que eram indicados para o posto administrativo não tinham conhecimento da jurisprudência e tão pouco uma preparação específica para o cargo. O tipo de administração oriental não era baseada em um governo regido por leis, como no Ocidente, mas sim por uma espécie de concepção mágica.

O objetivo da investigação da sociologia de Weber é a ação social, a conduta humana dotada de sentido, de uma justificativa subjetivamente elaborada. Assim, o ser humano passou a ter, enquanto indivíduo, significado e especificidade. É ele que dá sentido à sua ação social: estabelece a conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e seus efeitos.

Vimos que para o positivismo, a ordem social submete os indivíduos como força exterior a eles. Para Weber, ao contrário, não existe oposição entre indivíduo e sociedade: as normas sociais só se tornam concretas quando se manifestam em cada indivíduo sob a forma de motivação. Cada sujeito age levado por um motivo que é dado pela tradição, por interesses racionais ou pela emotividade. O motivo que transparece na ação social permite desvendar o seu sentido, que é social na medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou a reação de outros indivíduos.

A tarefa do cientista é descobrir os possíveis sentidos das ações humanas presentes na realidade. O sentido é expressão da motivação individual, formulado pelo agente ou implícito em sua conduta. Para Weber, o caráter social da ação individual decorre da interdependência dos indivíduos, ou seja, um ator age sempre em função de sua motivação e da consciência de ator em relação a outros atores.

Ao cientista compete descobrir os possíveis sentidos da ação humana. As conexões estabelecidas entre motivos e ações sociais revelam as diversas instâncias da ação social: política, econômica ou religiosas. Por exemplo, o ato de enviar uma carta se decompõe em uma série de ações sociais com sentido: escrever, selar, enviar e receber. Terminam por realizar um objetivo. Por outro lado, muitos agentes ou atores estão relacionados a essa ação social: a atendente, o carteiro etc. Essa interdependência entre os sentidos das diversas ações é que dá a esse conjunto de ações seu caráter social.

É o indivíduo que, por meio dos valores sociais e de sua motivação, produz o sentido da ação social. Isso não significa que cada sujeito possa prever com certeza todas as conseqüências de determinada ação. Por mais individual que seja o sentido da minha ação, o fato de agir levando em consideração o outro dá um caráter social a toda ação humana. Assim, o social só se manifesta em indivíduos, expressando-se sob forma de motivação interna e pessoal.

Weber distingue a ação da relação social. Para que se estabeleça uma relação social, é preciso que o sentido seja compartilhado. Por exemplo, um sujeito que pede uma informação a outro estabelece uma ação social: ele tem um motivo e age em relação a outro indivíduo, mas tal motivo não é compartilhado. Numa sala de aula, onde o objetivo da ação dos vários sujeitos é compartilhado, existe uma relação social.


2. O tipo ideal

Para atingir a explicação dos fatos sociais, Weber propôs um instrumento de análise que chamou de tipo ideal. Assim, por exemplo, em "As causas sociais do declínio da cultura antiga", ele define o patrício romano no auge do império: “o tipo do grande proprietário de terra romano não é o do agricultor que dirige pessoalmente a empresa, mas é o homem que vive na cidade, pratica a política e quer antes de tudo, receber rendas em dinheiro. A gestão de suas terras está nas mãos dos servos inspetores.”

Trata-se de uma construção teórica abstrata a partir dos casos particulares analisados. O cientista, pelo estudo sistemático das diversas manifestações particulares, constrói um modelo acentuando aquilo que lhe pareça característico ou fundante. Nenhum dos exemplos representará de forma perfeita e acabada o tipo ideal, mas manterá com ele uma grande semelhança e afinidade, permitindo comparações e a percepção de semelhanças e diferenças. Constitui-se em um trabalho teórico indutivo que tem por objetivo sintetizar aquilo que é essencial na diversidade das manifestações da vida social, permitindo a identificação de exemplares em diferentes tempos e lugares.

O tipo ideal não é um modelo perfeito a ser buscado pelas formações sociais históricas nem mesmo qualquer realidade observável. É um instrumento de análise científica, numa construção do pensamento que permite conceituar fenômenos e formações sociais e identificar na realidade observada suas manifestações.

É preciso deixar claro que o tipo ideal nada tem a ver com as espécies sociais de Durkheim, que pretendiam ser exemplos de sociedades observadas em diferentes graus de complexidade num continum evolutivo.


3. Alguns aspectos da "Sociologia da Educação" de Weber.

Bem, mas para Weber, o que isso tem a ver com a educação?

O Estado precisa de uma burocratização e um direito racional, assim como as empresas capitalistas precisam de funcionários lógicos, que visem o maior lucro, e saibam se basear no cálculo de custos e benefícios. E o jeito para que eles consigam isso é transformando a educação em uma educação racionalizada, onde o homem esteja desencantado – livre de concepções mágicas –, e que seja obediente somente ao direito racional.

Então, para Weber, a sociologia da educação passa a ter duas novas finalidades pedagógicas: 
1- preparar o aluno para uma conduta de vida e 2- transmitir o conhecimento especializado.

O primeiro, Weber dá o nome de pedagogia do cultivo. E para explicar essa pedagogia Weber escreve um texto chamado "Os Letrados Chineses". A pedagogia do cultivo tem como objetivo educar um tipo de homem culto, isto é, prepará-lo culturalmente para a camada social onde vive, fazendo com que ele adquira certos tipos de comportamentos interiores (reflexidade) e exteriores (comportamento social) na vida. Esse tipo de educação pode ser comparada à educação humanista do Ocidente.

A pedagogia do cultivo foi durante séculos a forma mais importante de educação da China. A qualificação para admissão de funcionários administrativos, era realizada por exames que se preocupavam em avaliavam o quanto de literatura o candidato possuía, e se ele tinha um modo de pensar culto. Esses exames não comprovavam habilitações especiais, mas sim o quanto de carisma tinha o candidato. Esses funcionários do governo chinês eram os letrados. Na prática eles não governavam, apenas intervinham em caso de acidentes, pois, como já foi dito no início do texto, não tinham uma formação administrativa para assumir o cargo. Esse cargo era de extrema importância e respeito, pois lhes eram atribuídos qualidades mágicas e carismáticas. Os letrados tinham privilégios estamentais e sociais.

A educação chinesa era voltada para a formação culta do indivíduo. Vejamos como essa educação se dava nas escolas.

As escolas de séries iniciais desenvolviam provas de redação, estilo, domínio de autores clássicos. Sua educação literária consistia em hinos, contos épicos, rituais e cerimônias. A partir dos sete anos, a educação era separada pelo sexo. O “livro da escola” era um cerimonial de regras para o autocontrole, além de piedade e medo para com os pais e as pessoas mais velhas.

A educação superior pública dependia de um vestibular para seu ingresso. Era totalmente literária, não militar, ensinava as artes da dança, das armas e dos ritos. A música tinha uma significação mágica na educação, pois era ela que mantinha os “espíritos encadeados”.

O desenvolvimento da escrita chinesa era muito maior do que a oratória por motivos lingüísticos, pois a língua monossilábica chinesa exige uma percepção muito maior do som e do tom. Todo tipo de intelectualismo falado era então considerado pobre. A perfeição da escrita deveria era valorizada. Por esse motivo, os alunos das séries iniciais, antes mesmo de aprender o significado dos símbolos, passavam dois anos aprendendo a pintar aproximadamente dois mil caracteres.

A educação chinesa era tradicional, leiga, pois tinha um caráter ritualista de cerimonial. As escolas não tinham interesse pelas ciências e pela filosofia. Esta não tinha um caráter racional, como a ocidental. Todos os problemas básicos da filosofia ocidental eram desconhecidos na filosofia chinesa. Até mesmo o cálculo foi perdendo sua importância com o tempo. Não era mais mencionado nem na pedagogia posterior. Os comerciantes tinham que aprender o cálculo durante seu ofício, nos escritórios.

A segunda finalidade da educação Weber chamou de pedagogia do treinamento. Nesta Weber diz que a educação perdeu o sentido próprio da palavra. A educação tinha como objetivo desenvolver os talentos humanos. Mas com o crescimento da burocratização, da racionalização, da dominação política e das grandes corporações capitalistas privadas, a educação passa a ter o objetivo de formar um homem cada vez mais especializado, que busca apenas ascensão social e riqueza material e não um homem que busque sua liberdade.

E para Weber, essa racionalização é invencível, portanto não há nada que se possa fazer. Iremos aprofundar esta questão no texto do Alberto Tosi Rodrigues. Enquanto isso, você poderá aprofundar a questão conferindo estes textos.

"Uma introdução a Max Weber e à obra 'A Ética Protestante e o Espírito Capitalista'” de Franklin Ferreira, disponível
em: http://www.mackenzie.com.br/teologia/fides/vol05/num02/Franklin.pdf

"A educação à luz da teoria sociológica weberiana, de Wânia R. C. Gonzalez, disponível em:
http://www.anped.org.br/25/minicurso/educacaoteoriaweberiana.doc

"Educação e liberdade em Max Weber" uma resenha do livro de Alonso Bezerra de Carvalho, disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/043/43res_carvalho.htm

20 de março de 2006

VI. CONSIDERAÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA MARXISTA


O tema da educação não ocupou um lugar central na obra de Marx. Ele não formulou explicitamente uma teoria da educação, muito menos princípios metodológicos e diretrizes para o processo ensino-aprendizagem. Sabemos que sua principal preocupação fora o estudo das relações sócio-econômicas e políticas e seu desenvolvimento no processo histórico.

Entretanto, a questão educacional encontra-se inevitavelmente enredada em sua obra. Existem alguns textos que Marx, juntamente com Engels, redigiu sobre a formação e o ensino em que a concepção de educação está articulada com o horizonte das relações sócio-econômicas daquela época. Assim, para compreendermos qual sua perspectiva na análise do fenômeno educativo precisamos passar pelo seu modo de compreender a sociedade. Na seqüência, nosso propósito é pontuar algumas das questões que, em nosso entender, chamam a atenção para uma re-leitura de Marx e Engels, hoje, no âmbito educacional.

O ponto de partida da história, para Marx, é a existência de seres humanos reais que vivem em sociedade e estabelecem relações. Para ele a essência do homem é o conjunto das relações sociais. Assim, a corporeidade natural é uma condição necessária mas não suficiente. A humanização do ser biológico e específico só se dá dentro da sociedade e pela sociedade. Gadotti (1984) nos lembra que, para Marx, o homem não é algo dado, acabado. Ele é processo, ou seja, torna-se homem e, isto, a partir de duas condições básicas: a) ele produz-se a si mesmo e, ao fazê-lo, se determina como um ser em transformação, como o ser da práxis e; b) esta realização só pode ter lugar na história.

O que distingue o ser humano dos outros animais, conforme Marx, é o fato de ele, num dado momento da história, começar a produzir os seus próprios meios de existência. O que o ser humano é coincide com “o que” e “como” ele produz. Ao contrário de Hegel, para quem a consciência determina a vida concreta, real; em Marx é a vida concreta e real que determina a consciência. Assim, “O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (MARX; ENGELS, 1999, p. 28).

Deduz-se desta perspectiva que, para a compreensão do processo educativo, deve-se compreender aquele (processo) pelo qual os seres humanos produzem a sua existência, isto é, o processo produtivo, o mundo do trabalho e o âmbito de suas relações. Para essa análise é preciso recorrer à situação da divisão do trabalho, o que permite considerar o grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma sociedade. Assim, podemos tomar como exemplo a divisão entre campo e cidade, entre trabalho comercial e industrial. A divisão do trabalho conduz a diferentes interesses ocasionando até mesmo interesses opostos.

O advento da propriedade privada provocou um mudança decisiva na divisão do trabalho. A partir da divisão do trabalho em trabalho manual e trabalho intelectual surgem outras dicotomias: gozo e trabalho, produção e consumo, miséria e opulência. Estas dicotomias originam um conflito de interesses: o individual versus o coletivo, o público e o privado.

Marx e Engels (1999, p. 46) apontam para as conseqüências desta divisão: “(...) com a divisão do trabalho fica dada a possibilidade, mais ainda, a realidade, de que a atividade espiritual e a material – a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes; e a possibilidade de não entrarem estes elementos em contradição reside unicamente no fato de que a divisão do trabalho seja novamente superada”.

Aquele caráter edificante, socializante e humanizante do trabalho, onde o indivíduo constrói-se na interrelacão com os demais indivíduos, desfaz-se sob a economia capitalista, pois o ser humano passa a representar uma força de trabalho que é vendida aos proprietários dos meios de produção como aparente garantia de sua sobrevivência. A vida torna-se, assim, um simples meio de vida. Como conseqüência disso temos aquilo que Marx denominou como alienação, isto é, o trabalho que o ser humano realiza produz objetos que não lhe pertencem e, além disso, voltam-se contra ele como estranhos. A diferença entre o que ele produz e o que ele é na vida cotidiana aumenta cada vez mais. O trabalho torna-se cada vez mais alheio ao trabalhador. Quanto mais o trabalhador produz, mais ele nega-se a si mesmo, mais arruína-se física e espiritualmente.

A propriedade privada, portanto, constitui a base de todo o processo de alienação. O conceito de alienação mostra concretamente o que impede o desenvolvimento do ser humano e como se pode ultrapassar tais impedimentos. Nos Manuscritos Econômico-filosóficos Marx afirma que a superação da propriedade privada significa a emancipação plena de todos os sentidos e qualidades humanos.

A educação, na sociedade capitalista, é, segundo Marx e Engels, um elemento de manutenção da hierarquia social; ou o que Gramsci denominou como instrumento da hegemonia ideológica burguesa. A igualdade política é algo meramente formal e não passa de uma ilusão visto que a desigualdade social é concreta e inequívoca. Atualmente a situação não parece ser muito diferente daquela vivida e descrita por eles.

No entanto, uma das possibilidades de viabilizar a superação das dicotomias existentes e da emancipação do ser humano reside na integração entre ensino e trabalho. A esta integração eles designam ensino politécnico ou formação omnilateral. Por meio desta educação omnilateral o ser humano desenvolver-se-á numa perspectiva abrangente isto é, em todos os sentidos. Conforme Gadotti (1984, p. 54-55) “A integração entre ensino e trabalho constitui-se na maneira de sair da alienação crescente, reunificando o homem com a sociedade. Essa unidade, segundo Marx, deve dar-se desde a infância. O tripé básico da educação para todos é o ensino intelectual (cultura geral), desenvolvimento físico (ginástica e esporte) e aprendizado profissional polivalente (técnico e científico).”

Marx e Engels não só indicaram freqüentemente que o trabalho físico sem elementos espirituais destrói a natureza humana como, também, que a atividade intelectual à margem do trabalho físico conduz facilmente aos erros de um idealismo artificial e de uma abstração falsa. Logo, a união entre os dois dá um caráter integral à educação e tomará o lugar da formação unilateral, especializada e alienada.

Assim, o ensino aparece como instrumento para o conhecimento e também para a transformação da sociedade e do mundo. Este é o potencial e o caráter revolucionário da educação. O proletariado, por si só, não conquista sua consciência de classe, sua consciência política, justamente pelo fato de ter sido privado desde o início dos meios que lhe permitiriam consegui-lo. Por isso, há a necessidade de um processo educativo pautado em um projeto político e pedagógico definido e voltado aos interesses da grande maioria excluída. Aí é que surge o papel estratégico da escola, dos educadores e intelectuais, os quais, em nosso entender, são decisivos para a construção da consciência de classe do trabalhador.

Acreditamos que é extremamente pertinente a concepção educativa de Marx e Engels, visto que sua proposta recupera o sentido do trabalho enquanto atividade vital em que o homem humaniza-se sempre mais ao invés de alienar-se e a educação é concebida, não como instrumento de dominação e manutenção do status quo mas, como processo de transformação desta situação.

A obra destes autores constitui uma crítica fundamental à concepção burguesa do ser humano e de educação. Às concepções metafísicas e idealistas, que são fundamentalmente conservadoras, estes pensadores opõem a concepção materialista, histórica e dialética, isto é, interessaram-se pelo ser humano real em carne e osso, por seus problemas enquanto vivem em sociedade, visando uma transformação positiva e humanizante. Esta concepção dialético-histórica do ser humano toma como premissa fundamental o fato de ele não ser um dado, mas essencialmente um construir-se. Deste modo, a educação deve vir para corroborar esta construção que não é meramente teórica ou abstrata, mas real, prática.

Na sociedade capitalista contemporânea a educação reproduz o sistema dominante tanto ideologicamente quanto nos níveis técnico e produtivo. Na concepção socialista, a educação assume um caráter dinâmico, transformador, tendo sempre o ser humano e sua dignidade como ponto de referência. Uma educação omnilateral é o que continua fazendo falta em nossa sociedade. O atual sistema educativo, sobretudo no Brasil, vem confirmando o que se diz sobre reprodução, exclusão e dominação. Projetos político-pedagógicos até existem e são propostos, mas são postos em andamento aqueles que legitimam o sistema e não representam para ele uma ameaça.

Referências


GADOTTI, Moacir. Concepção dialética da educação: um estudo introdutório. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 1984.


MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 11ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.

10 de março de 2006

V. DURKHEIM E A EDUCAÇÃO PARA A SOCIEDADE


Para entender os pressupostos de Durkheim sobre a educação, assim como qualquer outro pensamento, e qualificar nossa consciência sobre a educação de hoje, parece ser necessário deixar de lado qualquer abordagem linear.

Existe uma rede de inter-relacionamentos entre todos os seus contemporâneos. Mesmo autores anteriores estão ligados a essa espécie de rede, que tende a não ter começo, ou seja, a história desses pensamentos é parte de uma totalidade de conhecimentos e em todo momento podemos encontrar elementos de um em outro e vice-versa.

Não gostaria de entender as idéias de Durkheim como a simples superação das idéias de outro autor, ou diagnosticar uma defasagem daquelas em relação a estas. Na verdade, percebo equívocos de compreensão quando determinamos a história como se fosse composta por degraus, ou mesmo como uma evolução qualitativa da consciência humana. Essa afirmativa ainda não é clara e carece de aprofundamento e referências, mas não posso deixar de expressar a necessidade de ver essa história como algo que se expande em um movimento antilinear, provocado por pulsos de várias experiências, que sempre estão centrífugas, mais como uma fonte do que como uma estrada.

Neste sentido, podemos contextualizar, ainda que rapidamente, qual era a realidade que estava à volta de Durkheim. Nascido em uma família de rabinos, em 1858, foi educado rigidamente. Mora durante dois anos na Alemanha e estuda Ciências Sociais com Wundt. Escreve seus primeiros artigos de sucesso em 1886. Depois disso, em 1870, começa a discutir, avançadamente à sua época, os aspectos de uma instrução pública. Em 1902, assume a cadeira de sociologia na Universidade de Paris. Foi profundamente afetado pelos fatos sociais de sua época, tanto que estes passam a ser seu principal objeto de estudo. Imerso nestes fatos: as crises da Comuna (1870-1871); o caso Dreyfus (1894-1899); pelo assassinato de Jaurés (1914); a Primeira Grande Guerra; ainda sofre ataques pessoais por sua ascendência estrangeira. Morre em 1917.

Na atmosfera que estabelecia, pela segunda revolução industrial, uma estruturação urbana que destruía então, muitas das relações sociais ligadas ao artesanato, assim como, todos os sistemas que não se adaptassem ao sistema de produção industrial, Durkheim inicia uma análise realizada na observação de como as capacidades das forças coercitivas atuam na determinação da conduta dos indivíduos, ou como modernamente se diz: os mecanismos de controle social. Foi aqui que Durkheim estabeleceria sua relação com a educação, que ele considerava a ação exclusivamente exercida sobre as gerações mais jovens.

Para Durkheim, a sociedade é uma determinante, e exige que o indivíduo se adapte totalmente aos seus objetivos. A educação é o principal instrumento dessa adaptação. É a educação que transforma a criança, desprovida de um senso social, em uma peça ativa da sociedade. O trabalho dos adultos sobre as "falhas" da criança, contribui para a incorporação dos princípios da sociedade da qual essa criança faz parte. Desta maneira, podemos entender, pelo prisma de Durkheim, que a história tem um papel fundamental, ou melhor, a história nos mostra como foram educados os indivíduos para a vida social. Por isso, Durkheim pressupõe ser indispensável à observação histórica para termos uma noção preliminar da educação e suas aplicações.

Nesta observação da história das sociedades e suas relações, Durkheim procura demonstrar que não podemos escapar de uma formação voltada para o bem estar desta sociedade, e que, se nos desviarmos deste caminho, poderemos causar muito desconforto à criança, e até a sua exclusão do meio social, pelas dificuldades que a criança enfrentaria se não conhecesse os valores e necessidades da sociedade em que estará inserida. Há, no entendimento de Durkheim, uma função ao mesmo tempo una e múltipla dos sujeitos sociais, ou seja, apesar de construir uma especificidade de tarefas e de trabalho, o indivíduo tem que estar a serviço de um bem maior, assim como receber e internalizar os valores coletivos que garantem o funcionamento desta sociedade, e é justamente por este aspecto que entendemos o pensamento durkheimiano como representante de uma corrente funcionalista de raciocínio, em que a absorção de princípios morais são seu fundamento. O sujeito é único enquanto sua particularidade de especialização, mas está, ao mesmo tempo, dentro de uma constelação de valores que são compartilhados com todo os sujeitos de uma mesma sociedade, caracterizados como os valores culturais a que todo os indivíduos devem ter acesso para a sua própria continuidade.

Desta maneira, Durkheim nos apresenta objeções às idealizações da educação, principalmente quando essas sugerem uma educação universal, que possa atender a todas as sociedades sem observar suas diferenças originais e históricas. Para este pensador, não há possibilidade de mudar uma instituição que foi construída ao longo de um período histórico que comanda as necessidades da formação desta instituição, pois se isso acontecer, seria necessário uma mudança na própria estrutura desta sociedade, isto porque a educação não tem esse poder, por se aplicar a estruturas já existentes, não sendo ela a criadora dessas estruturas, mas exatamente o contrário.

Esta dificuldade se impõe porque na história a educação tem variado com o tempo e o meio em que participa. Cada período histórico tem sua característica particular, o que inviabiliza a aplicação de um mesmo modelo pedagógico. Definitivamente, é impossível mudar os costumes que formam os sistemas de educação, pois a educação será sempre o reflexo da sua sociedade.

Entre esses projetos idealistas criticados por Durkheim, podemos reconhecer basicamente dois modelos. O primeiro é aquele que busca a perfeição do indivíduo ao seu extremo, como meta última na realização e potencialização dos sujeitos. Porém, Durkheim afirma que é uma contradição acreditar num desenvolvimento harmônico do indivíduo em relação às necessidades de uma tarefa especializada, que este sujeito deverá desenvolver. A outra forma idealista de educação é aquela que procura a felicidade para si mesmo e para os outros membros da sociedade. Também é contestada por Durkheim por perceber a felicidade como algo essencialmente subjetivo, o que torna impossível o seu trabalho prático na educação, que é social.

Nesta relação, una e múltipla, podemos entender que a natureza específica da educação é realmente agir sobre as gerações mais jovens e despreparadas para o convívio social, suscitando e desenvolvendo um certo número de estados físicos, morais e intelectuais, que são exigidos pela sociedade no seu todo, mas também criando o espaço para o desenvolvimento das particularidades que o indivíduo está destinado a trabalhar dentro e a favor deste contexto.

A definição que Durkheim impetra para educação, sugere algumas conseqüências inexoráveis. Entre elas está a criação de um caráter social que tende a promover uma socialização metódica constante das novas gerações diante dos valores reclamados pela sociedade.

Aquelas formas particularizadas, que os membros de uma sociedade devem desenvolver dentro do seu grupo específico, sejam de trabalho ou qualquer outra estrutura de relações, forma o que Durkheim chama de "ser individual". Já as qualidades que todos os indivíduos necessitam obter na educação para participar da sociedade formam o "ser social". É o "ser social" que deve ser a meta da educação para Durkheim, ou seja, o fim dessa educação, pois é na sociedade que se expressa a moral adquirida pela educação. Esta formação se dá quando a sociedade agrega ao ser individual toda sua estrutura de vida, não se limitando a desenvolver somente o ser natural, mas sim, criando um homem novo.

A educação transmite para o indivíduo conhecimentos que a natureza nunca poderia realizar, sendo que, mesmo as qualidades que pareçam ser escolhidas pelos próprios indivíduos, são profundamente ligadas ao meio social que as prescreve como necessárias. Assim, "desejando melhorar a sociedade, o indivíduo deseja melhora-se a si próprio"(Durkheim).

Durkheim defende uma educação pública, e ainda que existindo uma iniciativa privada, esta conviveria com uma intervenção do Estado, apenas enquanto representante e vigilante da moral de que a sociedade é autora. Este Estado, irá zelar pela qualidade da mensagem da sociedade na formação do novo homem, não assumindo o papel de idealizador da formas da moral, mas sim fiscalizar os professores e os sistemas para que nenhum personalismo proíba que a nova geração saia da ignorância e do egoísmo e a barbárie da infância, para uma vida social plena de riquezas morais e princípios valorizados pela sociedade saudável.

Neste processo, a criança passará por um intenso exercício de contenção de suas extravagâncias e desejos, assim como ocorrerá a eliminação da necessidade de experiências improvisadas. A vida do estudante é se estruturar dentro de um sistema que extingue a criatividade, ou os impulsos de natureza investigativa sem um propósito científico claro e definido pelas necessidades do seu grupo social. Sendo o Estado o mediador entre essa falta primordial e a moralização dos alunos, coerentemente legitimado pela sociedade.

Todo o trabalho do educador, respaldado pela coordenação das diretrizes morais pelo Estado, será voltado para mostrar através dessa moral irredutível como deve ser o comportamento de um verdadeiro cidadão. Esta pedagogia é urgente e atende a necessidades vitais de formação das crianças, não pode esperar para se desenvolver com a pesquisa científica e retomadas críticas.

A educação, para Durkheim, é um processo em que, é fundamental destruir na criança aquilo que é inadequado para o convívio social, através da disciplina, do enquadramento e da autonomia, que aliás é, este último, um conceito pouco definido por ele, mas que podemos entender como uma síntese do trabalho dos dois primeiros fatores tornando o ser individual totalmente solícito às regras que são propostas a ele, ou seja, depois de um processo de extinção de seu egoísmo, o indivíduo passa a aceitar a moral que lhe foi impetrada e passa ele mesmo a assumir sua determinação em seguir essa moral. Torna-se autônomo em sua própria designação, sem precisar mais de nenhuma coordenação ou controle. Por isso talvez Durkheim não se estenda na definição da autonomia, ela é alcançada em um momento que o indivíduo já foi trabalhado pela disciplina e pelo enquadramento, sendo seu fruto mais tranquilizador  É como se ela surgisse já no ser social instituído e finalizado, isto é , é mais um objetivo do que uma ferramenta.

É necessário, então, que o espaço esteja vazio, pela ação do educador, para que este mesmo educador possa incutir na criança todos os preceitos de um outro, que é a expectativa da sociedade civilizada, pois a criança não sabe amar o convívio social pela suas limitações, e assim a educação permite, amorosamente, a inserção deste novo homem, desta alteridade, depois de corretamente educado e moralizado. O aluno se transforma num pólo receptivo que irá receber, ou melhor, encarnar uma transferência de todas as normas morais.

A educação é um ato de moralização, a serviço dos interesses que a sociedade exige, enquanto realidade de vida, e enquanto estruturas formais da razão, e não da religião. Durkheim nega a moral religiosa que se apresentava como parâmetro de conduta até o início da modernidade, e esclarece que a moral laica é que pode revelar a qualidade exata da formação do novo homem, mesmo porque a religião fora criada pela sociedade. É esse Outro encarnado que, com sua moral social, irá controlar, no processo pedagógico, que o ser individual se submeta ao interesse da coletividade em que está inserido, e passe a trabalhar para a manutenção dessa moral.

É curioso entender como Durkheim e seus contemporâneos, entendiam a forma de cativar a atenção dos alunos neste trabalho de moralização, e assim transmitir da melhor maneira os atributos dessa moral laica, a salvadora e constituidora da verdadeira sociedade civilizada. Todo o processo educacional foi, então, comparado com a técnica da hipnose que, no contexto da época, era uma forma conceituada de resolver os mais variados problemas e assumia ares milagrosos.

O educador deveria assumir a atitude de um hipnotizador, expressando sua autoridade s em titubeios,e magnetizando os alunos com sua postura moral inquebrantável. Essa postura irredutível transmitiria a força insubstituível da moral racional da sociedade moderna, que estava crescendo a todo vapor, literalmente. Desta maneira, o professor seria uma fonte de desejo, pois os alunos buscariam adquirir a moral que o próprio mestre encerra, e depois buscariam o próprio âmago do bem social, sublimando ao máximo a sua participação no todo da experiência coletiva, servindo a um fim superior a ele e a todos os outros indivíduos, autonomamente, perfeitamente disciplinado e enquadrado, e por isso, disciplinando e enquadrando.

Durkheim sabia que todos têm algumas faculdades recebidas dos pais, mas que estas são muito gerais e por isso muito maleáveis e totalmente educáveis. Deste modo, entre essas qualidades inatas tão rasas e o novo homem moral necessário à sociedade, existe uma grande distância, sendo que é este o papel da educação: levar a criança a percorrer essa distância, desviando-a das degenerações morais de certos estratos da sociedade que se perderam completamente da moralidade sugerida pela razão saudável.

Com o magnetismo de um hipnotizador, a fé interior nesses princípios que esse educador aprende a amar, a personificação do dever do homem perante a superioridade da sociedade, uma vontade irredutível de se desenvolver educando os mais jovens, o professor forçará a retirada do instinto rudimentar inato à criança e a posterior internalização dos conceitos que formam sua autoridade. Através do reconhecimento por parte da criança da força moral do educador, representada por necessidades históricas e absolutamente indispensáveis, esta mesma criança, quando adulta, encontrará dentro de si, já cristalizada na sua consciência, esta moralidade. E agindo autonomamente para garantir sua liberdade perante a renúncia de si mesmo, de sua condição incivilizada e rebelde, em detrimento ao pedido irrecusável de um todo do qual agora ela faz como prioridade participar.

Esse processo é um trabalho de colonização, pois o intuito é destruir totalmente o que possa existir de individualidade, de criatividade, e instalar uma nova maneira de ver o mundo, criada absolutamente por fatores externos ao indivíduo. Procura-se a morte da subjetividade da criança ou a submissão completa aos novos parâmetros que a educação tem por mérito inculcar nas novas gerações. O objetivo é a cópia do adulto e de sua moral social, demonstrando a criança como um "ser da falta", alguém que não pode ser deixado à mercê das improvisações do individualismo egocêntrico e involuído.

Para destruir qualquer levante de uma subjetividade mais rebelde, é usada uma aclimatação dos ambientes sociais a uma censura moral permanente que exclui o sujeito que realize alguma ação fora do senso dessa moral estabelecida. Cria-se, se necessário, formas de punição que visam desestabilizar o infrator, pela vergonha ou pela própria culpabilidade de suas faltas, o que leva a valorizar ainda mais os indivíduos que os observem descumprindo o dever, por estarem eles próprios mostrando a incapacidade da subjetividade em se estabilizar no âmbito da sociedade, e fortalecendo a importância de ser submisso para ser aceito e valorizado pela coletividade. Antes de servir como castigo, a punição é um regulador que será interiorizado junto com as outras regras da moral social.

A colonização dessa criança que, segundo Durkheim, tem uma natureza avessa a novidades, ou seja, misoneísta, precisa convencê-la a desejar a regra e a disciplina, em um processo que visa dar autonomia à desse desejo. É preciso que o estudante se torne impotente perante a grandeza das propostas civilizadoras de sua sociedade. Promover uma fusão desses indivíduos na consciência coletiva, e configurar uma diluição da consciência individual na sua forma coletiva, e não a criação de estruturas pessoais associadas e participativas. É uma completa extinção de qualquer sentido fragmentado que impeça a moralização laica, cuja realização depende de revelar aos indivíduos um objetivo que os ultrapassa, em um sacrifício devoto ao amor de uma totalidade pura e humana, racional e estabelecida, para o desenvolvimento da qualidade produtiva da sociedade.

6 de março de 2006

IV. A SOCIOLOGIA NO ILUMINISMO


1. Introdução

O Renascimento desenvolveu nos homens novos valores, diferentes daqueles vigentes na Idade Média. Os valores renascentistas estavam mais adequados ao espírito do capitalismo, um sistema econômico voltado para a produção e a troca, para a expansão comercial, para a circulação crescente de mercadorias e para o consumo de bens materiais. Instalava-se uma sociedade baseada na distinção pela posse de riqueza e não pela origem, nome e propriedade fundiária.


Essa mudança radical no mundo ocidental exigia uma nova ordem social, dirigida por pessoas dispostas a buscar um espaço no mundo, a competir por mercados e a responder de forma produtiva à ampliação do consumo. Pessoas cuja vida estivesse direcionada para a existência terrena e suas conquistas, e não para a vida após a morte e para os valores transcendentais. Todas essas mudanças se anunciavam no Renascimento e se tornavam, cada vez mais radicais à medida que se adentrava a Idade Moderna e a Revolução Industrial se tornava realidade.

A nova concepção de lucro, elaborada e praticada pelo comerciante burguês renascentista, é a marca decisiva da ruptura com os valores e as ideias do mundo medieval. O lucro não é mais apenas o valor que se paga ao comerciante pelo trabalho realizado. O lucro expressa a premissa da acumulação, da ostentação, da diferenciação individual e assim realiza a ideia de que tenho o direito de cobrar o máximo que uma pessoa pode pagar. A ideia e a realização do lucro não eram de forma alguma novas. Eram conhecidas desde a Antiguidade, a partir do momento em que surgiu o comércio usando o dinheiro como equivalente de troca e, em decorrência, a acumulação de riqueza. No entanto, a forma de pensar e praticar o lucro era distinta. Enquanto no Império Romano o comércio realizado com a prática de preços considerados abusivos era considerado ilegal e pouco nobre, e a Igreja Católica considerava pecaminosa a atividade lucrativa, no capitalismo, o lucro tornou-se a finalidade de qualquer atividade econômica. 

Vejamos esta situação hipotética: na Grécia, um armador vivia da compra, do transporte e da venda de azeitonas à Europa. O preço final do produto remunerava o comerciante por seu trabalho de intermediação. Nesse preço estavam embutidas a reposição dos navios e dos escravos e a viagem de volta. Muitos comerciantes enriqueceram, porque agora também se cobrava o máximo possível pela mercadoria. Essa forma de entender o lucro era nova na história e foi instaurada pela burguesia a partir do Renascimento.

Se um comerciante pode auferir numa troca comercial o maior preço possível - resultante da relação entre oferta e procura e de outras condições produtivas e de mercado -, então é preciso que a produção seja organizada de forma mais racional e em larga escala. O fato de a concorrência ser cada vez maior também exige maior racionalidade e previsão. A procura por novas técnicas mais eficientes se torna uma constante. Muitos prêmios são oferecidos aos inventores, e projetos como os de Leonardo da Vinci, que ficaram apenas no papel, passam a fazer enorme sucesso. Desenvolvem-se a ciência e a tecnologia, enquanto na filosofia cada vez mais se procuram as raízes das formas de pensar.

O Renascimento introduziu e desenvolveu o antropocentrismo, a laicidade, o individualismo e o racionalismo. Com relação à vida social, passou a concebê-la como uma realidade própria sobre a qual os homens atuam; percebeu-se também a existência de diferentes modelos - a República, a Monarquia - e passou-se a analisá-los e a defender um ou outro modelo. Conseguiu-se vislumbrar a oposição entre indivíduo e sociedade, entre vontade individual e regras sociais.

A Ilustração, movimento filosófico que sucedeu o Renascimento, deu um passo além. Concebeu novas idéias de vida social e entendeu a coletividade como um organismo próprio. Começou a discernir aspectos e áreas da vida social com diferentes características e necessidades - a agricultura, a indústria, a cidade, o campo. O conceito de nação, como forma de organização política pela qual as populações estabelecem relações intersocietárias, já se cristalizara na Ilustração. O nacionalismo emergente do Renascimento, identificado ainda com o monarca e preso ao sentimento de fidelidade e sujeição, dá lugar à noção de organismo representativo da coletividade, independentemente de quem ocupa, por certo tempo, os cargos disponíveis.

O princípio de representatividade política, revelando um aprofundamento no entendimento da vida social, assim como o aparecimento de teorias capazes de explicar a origem do valor das mercadorias e outros mecanismos sociais, mostram o grau de desenvolvimento do pensamento social. Já era possível identificar fenômenos sociais e concebê-los em sua natureza própria diferenciada. O surgimento de conceitos, como Valor e Estado, revela a existência de uma metodologia e a emergência de uma nova forma de conhecer a realidade social.

O Renascimento correspondeu a uma primeira fase da sistematização do pensamento burguês na medida em que procurava trazer de volta à Europa os valores laicos, o gosto pela vida e o racionalismo, e atribuía ao indivíduo valores pessoais que não provinham da sua origem.

Embora ainda tivesse um certo caráter religioso, o Renascimento exaltava a natureza e os prazeres da vida terrena, fossem o êxtase religioso ou o simples prazer dos sentidos, que se consegue junto à natureza.

Nos séculos XVII e XVIII, entretanto, a burguesia avança na concepção de uma forma de pensar própria, capaz de transformar o conhecimento não só numa exaltação da vida e dos feitos de seus heróis, mas também num processo que frutificasse em termos de utilidade prática. Afinal, o desenvolvimento industrial se anunciava em toda sua potencialidade; os empreendimentos, quando bem dirigidos, prometiam lucros miraculosos. Portanto, era preciso preparar a sociedade para receber os resultados desse trabalho. Os próprios sábios deveriam se interessar em desenvolver conhecimentos de aplicação prática.

A sociedade apresentava necessidades urgentes ao desenvolvimento científico: melhorar as condições de vida; ampliar a expectativa de sobrevivência humana a fim de engrossar as fileiras de consumidores e, principalmente, de mão-de-obra disponível; mudar os hábitos sociais e formar uma mentalidade receptiva às inovações técnicas. A prática de elaboração dos projetos científicos para o desenvolvimento da indústria passa a ser aplicada à sociedade, pois sem um planejamento racional dos meios de transporte terrestres e marítimos, da distribuição e armazenamento dos produtos, da melhoria da infra-estrutura, todo o esforço produtivo estaria perdido.

O planejar e o projetar o futuro trouxeram consigo também o conceito de nação, correspondendo à extensão territorial onde a burguesia de determinado país teria total controle sobre o mercado. A nação deveria se submeter a uma organização política que pudesse favorecer o desenvolvimento econômico e estimulá-lo. Dentro dessa nova organização política da sociedade deveria privilegiar-se o indivíduo, principal motor do progresso econômico. Este deveria estar livre das amarras impostas até então pela sociedade feudal, pois, de posse de sua total liberdade de agir, mover-se e estabelecer-se, o indivíduo poderia promover o progresso econômico.

Novos valores guiando a vida social para sua modernização, maior empenho das pesquisas e do saber em conquistar avanços técnicos, nas condições de vida, tudo isso somado levou a esse surto de ideia conhecido pelo nome de Ilustração.

Após um primeiro momento em que a existência de um poder central garantia a emergência e a organização dessa nova ordem social, o mercado exigia liberdade de expansão. As novas formas de pensar e agir aliavam-se à necessidade de a burguesia libertar-se das amarras estabelecidas pelas monarquias absolutas, que não permitiam a livre iniciativa, a liberdade de comércio e a livre concorrência de salários, preços e produtos.

Assim, a Ilustração foi essencialmente pragmática e liberal, uma vez que a burguesia queria uma ordem econômica, política e social em que tivesse participação no poder e pudesse realizar seus negócios sem entraves.

Podemos dizer que a burguesia já se sentia suficientemente forte e confiante em seus próprios objetivos de vida para dispensar a figura do rei como seu aliado contra os privilégios feudais, tal como sucedera durante a época mercantilista, em que o Estado nacional favoreceu uma política de acumulação de capital por meio de monopólios, fiscalização, manufaturas e colonialismo. Fortalecida, a burguesia propunha agora formas de governo baseadas na legitimidade popular, até mesmo governos republicanos. Conclamava o povo a aderir à defesa da igualdade jurídica e do sufrágio universal.


2. A filosofia social dos séculos XVII e XVIII

O pensamento da Ilustração, apoiado principalmente na contribuição dos fisiocratas (escola econômica da época), defendia a ideia de que a economia regida por leis naturais de oferta e procura que tendiam a estabelecer, de maneira mais eficiente do que os decretos reais, o melhor preço, o melhor produto melhor contrato, pela livre concorrência. Além desse apreço pelo livre curso das relações econômicas, os fisiocratas, opondo-se ao uso ocioso que a nobreza fazia de suas propriedades agrárias, propunham melhor aproveitamento da agricultura, atividade que consideravam a principal fonte de riqueza das nações.

Segundo esse ponto de vista, as relações econômicas e sociais eram, regidas por leis físicas e naturais que funcionariam de maneira racional, desde que não prejudicadas pela intervenção do Estado absolutista. O controle das relações humanas surgia, portanto, da própria dinâmica da vida econômica e social, dotada de uma racionalidade intrínseca, cuja descoberta era a principal meta dos estudos científicos. A racionalidade estava na origem natural e física das leis de organização humana e na base da própria atividade humana e do conhecimento, tal como defendiam os pensadores franceses Renê Descartes e Denis Diderot. O racionalismo cartesiano - termo derivado de Cartesius, nome latino de Descartes - se expressava pela frase "penso, logo existo", na qual mostrava que a razão era a essência do ser humano.

Reconhecia-se no homem, portanto, a capacidade de pensar e escolher, resolver sem que leis rígidas perturbassem sua conduta. No plano econômico essa ideia se traduzia na ânsia por liberdade de ação, empreendimento e contratação. Traduzia-se ainda na concepção de que as relações entre os homens resultariam na livre contraposição de vontades, na liberdade contratual. No plano político, expressava-se no objetivo de livre escolha dos governantes segundo o ideal de um Estado representativo da vontade popular. Finalmente, no plano social, manifestava-se na noção de que as sociedades se baseavam em acordos mútuos entre os indivíduos que as compunham.

Um dos pensadores que mais desenvolveu essa ideia de um pacto social originário foi Jean-Jacques Rousseau. Em sua obra Contrato social, Rousseau afirmava que a base da sociedade estava no interesse comum pela vida social, no consentimento unânime dos homens em renunciar as suas vontades particulares em favor de toda a comunidade.

Para alicerçar suas idéias a respeito da legitimidade do Estado a serviço dos interesses comuns e dos direitos naturais do homem, Rousseau procurou traçar a trajetória da humanidade a partir do igualitarismo primitivo até a sociedade diferenciada. Para ele, a origem dessa diferenciação estava no aparecimento da propriedade privada. Justamente por essa crítica à propriedade, distingue-se dos demais filósofos da Ilustração.

John Locke, pensador inglês, também defendeu a ideia de que a sociedade resultava da livre associação entre indivíduos dotados de razão e vontade. Para Locke, essa contratação estabelecia, entre outras coisas, as formas de poder, as garantias de liberdade individual e o respeito à propriedade. Seus princípios deveriam ser redigidos sob a forma de uma constituição.

Entre os filósofos da Ilustração, ganhava adeptos a ideia de que toda matéria tinha uma origem natural, não-divina, e que todo processo vital não era senão o movimento dessa matéria, obedecendo a leis naturais. Esses princípios guiavam o conhecimento racional da sociedade, na busca das leis naturais da organização social.

Podemos afirmar que a filosofia social da Ilustração levaria à descoberta das bases materiais das relações sociais. Percebe-se claramente que os filósofos dessa época já desenvolviam a consciência da diferença entre, indivíduo e coletividade. Já percebiam que esta possuía regras próprias que regulavam a vida coletiva, como as regras naturais regiam o surgimento, o desenvolvimento e as relações entre as espécies. Mas, presos ainda à ideia de indivíduos, esses filósofos entendiam a vida coletiva como a fusão de individualidades. O comportamento social decorreria da manifestação explícita das vontades individuais.


3. Adam Smith: o nascimento da ciência econômica

Foi Adam Smith, considerado fundador da ciência econômica, quem demonstrou que a análise científica podia ir além do que era expressamente manifesto nas vontades individuais. Em sua análise sobre a riqueza das nações descobriu no trabalho, ou seja, na produtividade, a grande fonte de riqueza. Não era somente a agricultura, como queriam os fisiocratas, a principal fonte de bens; mas o trabalho capaz de transformar matéria bruta em produtos com valor de mercado. Veremos adiante como essa ideia será retomada e reelaborada no século XIX por Karl Marx.

Adam Smith revelara a importância do trabalho ao pensar a sociedade não como um conjunto abstrato de indivíduos dotados de vontade e liberdade, tal como fizeram Rousseau e Locke, mas ao aprender e perceber a natureza própria da vida social segundo a qual o comportamento social obedece a regras diferentes daquelas que regem a ação individual. A coletividade deixava de ser a soma dos indivíduos que a compõem. A Revolução Industrial estava em pleno andamento e seus frutos se anunciavam.


4. Legitimidade e liberalismo

As teorias sociais da Ilustração no século XVIII foram ainda o início do pensar científico sobre a sociedade. Tiveram o poder de orientar a ação política e lançar as bases do que viria a ser o Estado capitalista, desenvolvido no século XIX, constitucional e democrático. Lançaram também as bases para o movimento político pela legitimação do poder, fosse de caráter monárquico, como na Revolução Gloriosa da Inglaterra, fosse de caráter republicano, como na Revolução Francesa, ou ainda do tipo ditatorial, como no império napoleônico. Tão importante quanto seu valor como forma de entendimento da vida social e política foi sua repercussão prática na sociedade.

A filosofia social desse período teve, em relação à renascentista, a vantagem de não constituir apenas uma crítica social baseada no que a sociedade poderia idealmente vir a ser, mas de criar projetos concretos de realização política para a sociedade burguesa emergente.

A ideia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se baseia na pretensa representatividade da sociedade é um avanço em relação à ideia de Monarquia absoluta. O Estado já não é a pessoa que governa, mas uma instituição abstrata com relações precisas com a coletividade. Além da circulação de leis e de riquezas, o Estado criava o princípio da circulação de poder. O confronto de interesses também está subjacente às idéias propostas pelos políticos iluministas.

As idéias de Locke e de Montesquieu, outro importante pensador da Ilustração, foram a base da Constituição norte-americana de 1787. Ambos pregaram a divisão do Estado em três poderes: legislativo, incumbido da elaboração e da discussão das leis; executivo, encarregado da execução das leis, tendo em vista a proteção dos direitos naturais à liberdade, à igualdade e à propriedade; e judiciário, responsável pela fiscalização à observância das leis que asseguravam os direitos individuais e seus limites. Essa divisão estabelecia a distribuição das tarefas governamentais e a mútua fiscalização entre os poderes do Estado. Locke defendia, ainda, a ideia de que a origem do poder não estava nos privilégios da tradição, da herança ou da concessão divina, mas no contrato expresso pela livre manifestação das vontades individuais.

A legitimação norte-americana, instituindo a divisão do Estado nos três poderes e estabelecendo mecanismos para garantir a eleição legítima dos governantes e os direitos do cidadão, pôs em prática os ideais políticos liberais e democráticos modernos. Os Estados Unidos da América constituíram a primeira república liberal-democrática burguesa.


5. O cientificismo e organicismo

A primeira corrente teórica sistematizada de pensamento sociológico foi o positivismo, a primeira a definir precisamente o objeto, a estabelecer conceitos e uma metodologia de investigação. Além disso o positivismo, ao definir a especificidade do estudo científico da sociedade, conseguiu distinguir-se de outras ciências estabelecendo um espaço próprio à ciência da sociedade. Seu primeiro representante e principal sistematizador foi o pensador francês Auguste Comte.

O positivismo derivou do "cientificismo", isto é, da crença no poder exclusivo e absoluto da razão humana em conhecer a realidade e traduzi-Ia sob a forma de leis naturais. Essas leis seriam a base da regulamentação da vida do homem, da natureza como um todo e do próprio universo. Seu conhecimento pretendia substituir as explicações teológicas, filosóficas e de senso comum por meio das quais o homem explicava a realidade.

O positivismo reconhecia que os princípios reguladores do mundo físico e do mundo social diferiam quanto à sua essência: os primeiros diziam respeito a acontecimentos exteriores aos homens; os outros, a questões humanas. Entretanto, a crença na origem natural de ambos teve o poder de aproximá-los. Além disso, a rápida evolução dos conhecimentos das ciências naturais - física, química, biologia - e o visível sucesso de suas descobertas no incremento da produção material e no controle das forças da natureza atraíram os primeiros cientistas sociais para o seu método de investigação. Essa tentativa de derivar as ciências sociais das ciências físicas é patente nas obras dos primeiros estudiosos da realidade social. O próprio Comte deu inicialmente o nome de "física social" às suas análises da sociedade, antes de criar o termo sociologia.

Essa filosofia social positivista se inspirava no método de investigação das ciências da natureza, assim como procurava identificar na vida social as mesmas relações e princípios com os quais os cientistas explicavam a vida natural. A própria sociedade foi concebida como um organismo constituído de partes integradas e coesas que funcionavam harmoniosamente, segundo um modelo físico ou mecânico. Por isso o positivismo foi chamado também de organicismo.

Podemos apontar, portanto, como primeiro princípio teórico dessa escola a tentativa de constituir seu objeto, pautar seus métodos e elaborar seus conceitos à luz das ciências naturais, procurando dessa maneira chegar à mesma objetividade e ao mesmo êxito nas formas de controle sobre os fenômenos estudados.


6. O darwinismo social

É importante situar o desenvolvimento do pensamento positivista no contexto histórico do século XIX. A expansão da Revolução Industrial pela Europa, obtida pelas revoluções burguesas que atingiram todos os países europeus até 1870, trouxe consigo a destruição da velha ordem feudal e a consolidação da nova sociedade - a capitalista -, estruturada sobre a indústria. Já no final do século, a livre concorrência, que era a regra geral de funcionamento da sociedade capitalista européia, passa por profundas transformações com a crescente substituição da concorrência entre inúmeros produtores de cada ramo industrial por uma concorrência limitada a um pequeno número de produtores de cada ramo. Surgia a época dos monopólios e dos oligopólios, que, associados ao capital dos grandes bancos, dão origem ao capital financeiro. Esta reestruturação do capitalismo estava associada às sucessivas crises de superprodução na Europa, que traziam consigo a morte de milhares de pequenas indústrias e negócios, para dar espaço apenas às maiores e mais estruturadas indústrias. Estas, por sua vez, tiveram de se unir ao capital bancário para sustentar e financiar sua própria expansão. Crescer para fora dos limites da Europa era, portanto, a única saída para garantir a continuidade dessas indústrias.

Da mesma forma, o capital financeiro necessitava de novos mercados para poder crescer, pois era perigoso continuar investindo na indústria européia sem causar novas e mais profundas crises de superprodução. Desencadeava-se, assim, a corrida para a conquista de impérios além-mar; os alvos eram a África e a Ásia. Nesses continentes podia-se obter matéria-prima bruta a baixíssimo custo, bem como mão-de-obra barata; eram também pequenos mercados consumidores, bem como locais ideais para investimentos em obras de infra-estrutura. Porém, a exploração eficaz dessas novas colônias encontrava resistência nas estruturas sociais e produtivas vigentes nesses continentes que, de forma alguma, atendiam às necessidades do capitalismo europeu.

A Europa deparou com civilizações organizadas sob princípios tais como o politeísmo, a poligamia, formas de poder tradicionais, castas sociais sem qualquer tipo de mobilidade, economia agrária de subsistência, em sua grande maioria, ou voltada para um pequeno comércio local e artesanato doméstico. Assim, o europeu teve primeiro de organizar, sob novos moldes, as nações que conquistava, estruturando-as segundo os princípios que regiam o capitalismo. De outra forma seria impossível racionalizar a exploração da matéria-prima e da mão-de-obra, de modo a permitir o consumo de produtos industrializados europeus e a aplicação rentável dos capitais excedentes na Europa, nesses territórios.

Transformar esse mundo conquistado em colônias que se submetessem aos valores capitalistas requeria uma empresa de grande envergadura, pois dessa transformação dependiam a expansão e a sobrevivência do capitalismo industrial. Assim a conquista, a dominação e a transformação da África e da Ásia pela Europa precisavam apresentar uma justificativa que ultrapassasse os interesses econômicos imediatos. Isso explica o fato de a conquista européia estar revestida de um manto humanitário que ocultava a violência da ação colonizadora. Assim, a conquista e a dominação foram transformadas em "missão civilizadora". Países como Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Itália se apoderavam de regiões do mundo cujo modo de vida era totalmente diferente do capitalismo europeu. A "civilização" era oferecida, mesmo contra a vontade dos dominados, como forma de "elevar" essas nações do seu estado primitivo a um nível mais desenvolvido.

A atuação dos europeus sobre os demais continentes foi intensa, no sentido de transformar suas formas tradicionais de vida e neles introduzir os valores do colonizador. Como foi dito, essa nova forma de colonialismo se assentava na justificativa de que a Europa tinha, diante dessas sociedades, a obrigação moral de civilizá-las, de retirá-las do atraso em que viviam. Nesse sentido, entendia-se que o ápice da humanidade - o mais alto grau de civilização a que o homem poderia chegar - seria a sociedade industrial européia do século XIX.

Em consonância com essa forma de pensar desenvolveram-se as idéias do cientista inglês Charles Darwin a respeito da evolução biológica das espécies animais. Para Darwin, as diversas espécies de seres vivos se transformam continuamente com a finalidade de se aperfeiçoar e garantir a sobrevivência. Em conseqüência, os organismos tendem a se adaptar cada vez melhor ao ambiente, criando formas mais complexas e avançadas de existência, que possibilitam, pela competição natural, a sobrevivência dos seres mais aptos e evoluídos.

Tais idéias, transpostas para a análise da sociedade, resultaram no darwinismo social, isto é, o princípio de que as sociedades se modificam e se desenvolvem num mesmo sentido e que tais transformações representariam sempre a passagem de um estágio inferior para outro superior, em que o organismo social se mostraria mais evoluído, mais adaptado e mais complexo. Esse tipo de mudança garantiria a sobrevivência dos organismos - sociedades e indivíduos - mais fortes e mais evoluídos.

Os principais cientistas sociais positivistas, combinando as concepções organicistas e evolucionistas inspiradas na perspectiva de Darwin, entendiam que as sociedades tradicionais encontradas na África, na Ásia, na América e na Oceania não eram senão "fósseis vivos", exemplares de estágios anteriores, "primitivos", do passado da humanidade. Assim, as sociedades mais simples e de tecnologia menos avançada deveriam evoluir em direção a níveis de maior complexidade e progresso na escala da evolução social, até atingir o "topo": a sociedade industrial européia. Porém essa explicação aparentemente "científica" para justificar a intervenção européia nesses continentes era, por sua vez, incapaz de explicar o que ocorria na própria Europa. Lá, os frutos do progresso não eram igualmente distribuídos, nem todos participavam igualmente das conquistas da civilização. Como o positivismo explicava essa distorção?


7. Uma visão crítica do darwinismo social - ontem e hoje

Essa transposição de conceitos físicos e biológicos para o estudo das sociedades e das relações entre essas trouxe, ao darwinismo social, desvios importantes. O fundamento do conceito de espécie em Darwin dificilmente pode ser transposto para o estudo das diferentes sociedades e etnias.

Se o homem constitui sociologicamente uma espécie, o mesmo não se pode dizer das diferentes culturas que ele desenvolveu. Além disso, o caráter cultural da vida humana imprime, no desenvolvimento das suas formas de vida, princípios diferentes daqueles existentes na natureza. Os princípios da seleção natural são aplicáveis às espécies cujo comportamento é expressão das leis imperativas da natureza.

Hoje, sente-se que a complexidade da cultura humana tem concorrido para limitar a ação da lei de seleção natural. A adaptabilidade do homem e a sua dependência cada vez menor em relação ao meio têm transformado o ser humano numa espécie à qual a seleção natural se aplica de maneira especial e relativa.

Essa transposição serviu entretanto como justificativa de uma ação política e econômica que nem sequer avaliava efetivamente aquilo que representaria o "mais forte" ou mais evoluído.
Identificar a especificidade das regras que regem as sociedades é fundamental para o uso de conceitos de outras ciências. Ainda hoje se tenta essa transposição para justificar determinadas realidades sociais. A regra darwinista da competição e da sobrevivência do mais forte é aplicada às leis de mercado, principalmente pela doutrina do liberalismo econômico.

Pressupõe-se que competitividade seja o princípio natural - e portanto universal e exterior ao homem - que assegura a sobrevivência do melhor, do mais forte e do mais adaptado. É preciso lembrar que o mercado, como outros elementos da cultura humana, obedece a leis de organização social essencialmente humanas - e, portanto, históricas -, resultantes do desenvolvimento das relações entre os homens e entre as sociedades.


8. Duas formas de avaliar as mudanças sociais

O darwinismo social, além de justificar o colonialismo da Europa no resto do mundo, refletia o grande otimismo com que o progresso material da industrialização era recebido pelo europeu.
Entretanto, apesar desse otimismo em relação ao caráter apto e evoluído da sociedade européia, o desenvolvimento industrial gerava a todo momento novos conflitos sociais. Os empobrecidos e explorados - camponeses e operários - organizavam-se exigindo mudanças políticas e econômicas. Os primeiros pensadores sociais positivistas responderam com as idéias de ordem e progresso.

Haveria, então, dois tipos característicos de movimento na sociedade. Um levaria à evolução transformando as sociedades, segundo a lei universal, da mais simples à mais complexa, da menos avançada à mais evoluída. Outro procuraria ajustar todos os indivíduos às condições estabelecidas, garantindo o melhor funcionamento da sociedade, o bem comum e os anseios da maioria da população. Esses dois movimentos revelariam ser a ordem o princípio que rege as transformações sociais, princípio necessário para a evolução social ou o progresso. Essa ordem implicaria o ajustamento e a integração dos componentes da sociedade a um objetivo comum.

Os movimentos reivindicatórios, os conflitos, as revoltas deveriam ser contidos sempre que pusessem em risco a ordem estabelecida ou o funcionamento da sociedade, ou ainda quando inibissem o progresso.

Auguste Comte identificou na sociedade esses dois movimentos vitais: chamou de dinâmico o que representava a passagem para formas mais complexas de existência, como a industrialização; e de estático o responsável pela preservação dos elementos permanentes de toda organização social. As instituições que mantêm a coesão e garantem o funcionamento da sociedade, por exemplo, família, religião, propriedade, linguagem, direito etc. seriam responsáveis pelo movimento estático da sociedade. Comte relacionava os dois movimentos vitais de modo a privilegiar o estático sobre o dinâmico, a conservação sobre a mudança. Isso significava que, para ele, o progresso deveria aperfeiçoar os elementos da ordem e não destruí-los.

Assim se justificava a intervenção na sociedade sempre que fosse necessário assegurar a ordem ou promover o progresso. A existência da sociedade burguesa industrial era defendida tanto em face dos movimentos reivindicativos que aconteciam em seu próprio interior quanto em face da resistência das sociedades agrárias e pré-mercantis em aceitar o modelo industrial e urbano.


9. Organicismo

Outra escola que se desenvolveu no rastro das conquistas das ciências biológicas e naturais e da teoria evolucionista de Charles Darwin foi o organicismo, que teve como seguidores cientistas que procuraram aplicar seus princípios na explicação da vida social.

Um deles foi o alemão Albert Schäffle, que se dedicou ao estudo dos "tecidos sociais", conceito com o qual identificava as diferentes sociedades existentes, numa nítida alusão à biologia. Ninguém, entretanto, se destacou como Herbert Spencer, filósofo inglês que procurou estudar a evolução da espécie humana de acordo com leis que explicariam o desenvolvimento de todos os seres vivos, entre os quais o homem. Seu seguidor, o francês Alfred Espinas, afirma que os princípios da biologia são aplicáveis a todo ser vivo, razão pela qual propõe uma "ciência da sociedade", cujas leis estariam expressas na vida comunitária de todos os seres vivos, desde as espécies mais simples até o homem.

Todos esses cientistas partem do princípio de que existem caracteres universais presentes nos mais diversos organismos vivos, dispostos sob a forma de órgãos e sistemas - partes interdependentes cuja função primordial é a preservação do todo social. Procuravam assim criar uma identidade entre leis biológicas e leis sociais, hereditariedade e história. Essas teorias entendem as análises sociais da espécie humana como integradas aos estudos universais das espécies vivas. Ignoram a especificidade do homem, enquanto espécie predominantemente histórica e cultural. Por fim estabelecem leis de evolução em que as diversas sociedades humanas são tratadas como espécies.


10. Da filosofia social à sociologia

O positivismo foi o pensamento que glorificou a sociedade européia do século XIX, em franca expansão. Procurava resolver os conflitos sociais por meio da exaltação à coesão, à harmonia natural entre os indivíduos, ao bem-estar do todo social.

Por mais evidentes que sejam hoje os limites, interesses, ideologias e preconceitos inscritos nos estudos positivistas da sociedade, por mais que eles tenham servido como lemas de uma ação política conservadora, como justificativa para as relações desiguais entre sociedades, é preciso lembrar que eles representaram um esforço concreto de análise científica da sociedade.

A simples postura de que a vida em sociedade era passível de estudo e compreensão; que o homem possuía - além de seu corpo e sentimentos - uma natureza social; que as emoções, os desejos e as formas de vida derivavam de contingências históricas e sociais -, tudo isso foram descobertas de grande importância.

Diante desses estudos, devemos não perder a perspectiva crítica, mas entendê-los como as primeiras formulações objetivas sobre a sociabilidade humana. Apenas o fato de que tais formulações não vinham expressas num livro religioso nem se justificavam por inspiração divina é suficiente para merecerem nossa atenção. Foram teorias que abriram as portas para uma nova concepção da realidade social com suas especificidades e regras.

Quase todos os países europeus economicamente desenvolvidos conheceram o positivismo. No entanto, foi na França, por excelência, que floresceu essa escola, a qual, partindo de uma interpretação original do legado de Descartes e dos enciclopedistas, buscava na razão e na experimentação seus horizontes teóricos.

Entre os filósofos sociais franceses, pode-se destacar Hipolite Taine, cujas idéias sofreram menor influência de Comte. Formulou uma concepção da realidade histórica como determinada por três forças primordiais: a "raça", que constituiria o fundamento biológico; o "meio", que incluiria aspectos físicos e sociais; e o "momento", que se constitui no resultado das sucessões históricas. Outra figura relevante é Gustave Le Bon, médico e arqueólogo, contemporâneo de Taine, autor de pioneira e controvertida obra sobre a "psicologia das multidões", na qual reflete sobre as crenças sociais mais gerais formadoras da "mentalidade coletiva" e sua ação em indivíduos agrupados em multidão. Pierre Le Play, outro destes filósofos sociais, tinha uma perspectiva naturalista bem acentuada, havendo concentrado seus esforços na busca da “menor unidade social”, comparável ao átomo da física ou às células da biologia. Le Play estabeleceu a família como essa unidade básica e universal, postulando que as relações sociais seriam decorrência das relações familiares, em grau variável de complexidade. Temos ainda o inglês Herbert Spencer, que muito contribuiu com suas reflexões na linha do evolucionismo e do organicismo.

A maioria dos primeiros pensadores sociais positivistas permanece presa por uma reflexão de natureza filosófica sobre a história e a ação humanas. Procedimentos de natureza científica, análise sociológicas baseadas em fatos observados com maior critério só serão introduzidos por Émile Durkheim e seu grupo.



20 de fevereiro de 2006

III. A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO COMTE



O núcleo da filosofia de Comte radica na ideia de que a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Com isso, distingue-se de outros filósofos de sua época como Saint-Simon e Fourier, preocupados também com a reforma das instituições, mas que prescreviam modos mais diretos para efetivá-la.

Enquanto esses pensadores pregavam a ação prática imediata, Comte achava que antes disso seria necessário fornecer aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo. Por essa razão, o sistema comteano estruturou-se em torno de três temas básicos. Em primeiro lugar, uma filosofia da história com o objetivo de mostrar as razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele filosofia positiva ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Em segundo lugar, uma fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva. Finalmente, uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de modificação da sociedade permitisse a reforma prática das instituições. A esse deve-se acrescentar a forma religiosa assumida pelo plano de renovação social, proposto por Comte nos seus últimos anos de vida.

A Filosofia da Historia – primeiro tema da filosofia de Comte – pode ser sintetizada na sua célebre lei dos três estados: todas as ciências e o espírito humano como um todo desenvolvem-se através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva.


No estado teológico, pensa Comte, o número de observações dos fenômenos reduz-se a poucos casos e, por isso, a imaginação desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversidade da natureza, o homem só consegue explicá-­la mediante a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. O mundo torna-se compreensível somente através das idéias de deuses e espíritos.

Segundo Comte, a mentalidade teológica visa a um tipo de compreensão absoluta; o homem, nesse estágio de desenvolvimento acredita ter posse absoluta do conhecimento. Para além dos limites dos seres sobrenaturais, o homem não coloca qualquer problema, sentindo-se satisfeito na medida em que a possibilidade de recorrer à intervenção das divindades fornece um quadro para compreensão dos fenômenos que ocorrem ao seu redor.


Paralelamente às funções de explicação da natureza, a mentalidade teológica desempenharia também relevante papel de coesão social, fundamentando a vida social. Confiando em poderes imutáveis, fundados na autoridade, essa mentalidade teria como forma política correspondente a monarquia aliada ao militarismo.


O estado teológico, para Comte, apresenta-se dividido em três períodos sucessivos: o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo. No fetichismo, uma vida espiritual, semelhante à do homem, é atribuída aos seres naturais. O politeísmo esvazia os seres naturais de suas vidas anímicas - tal como concebidos no estágio anterior - e atribui a animação desses seres não a si mesmos, mas a outros seres, invisíveis e habitantes de um mundo superior. No monoteísmo, a distância entre os seres e seus princípios explicativos aumenta ainda mais; o homem, nesse estágio, reúne todas as divindades em uma só.


A fase teológica monoteísta representaria, no desenvolvimento do espírito humano, uma etapa de transição para o estado metafísico. Este, inicialmente, concebe “forças” para explicar ficar os diferentes grupos de fenômenos, em substituição às divindades da fase teológica. Fala-se então de uma “força física”, uma “força química”, uma “força vital”. Num segundo período, a mentalidade metafísica reuniria todas essas forças numa só, a chamada “natureza”, unidade que equivaleria ao deus único do monoteísmo.


O estado metafísico tem, segundo Comte, outros pontos de contato com o teológico. Ambos tendem à procura de soluções absolutas para os problemas do homem; a metafísica, tanto quanto a teologia, procura explicar a “natureza íntima” das coisas, sua origem e destino últimos, bem como a maneira pela qual são produzidas. A diferença reside no fato de a metafísica colocar o abstrato no lugar do concreto e a argumentação no lugar da imaginação.


Nessa perspectiva comteana, o estado metafísico se caracterizaria fundamentalmente pela dissolução do teológico. A argumentação, penetrando nos domínios das idéias teológicas, traria à luz suas contradições inerentes e substituiria a vontade divina por "idéias" ou "forças". Com isso, a metafísica destruiria a ideia teológica de subordinação da natureza e do homem ao sobrenatural. Na esfera política, o espírito metafísico corresponderia a uma substituição dos reis pelos juristas; supondo-se a sociedade como originária de um contrato, tende-se a basear o Estado na soberania do povo.


O estado positivo caracteriza-se, segundo Comte, pela subordinação da imaginação e da amamentação à observação. Cada proposição enunciada de maneira positiva deve corresponder a um fato, seja particular, seja universal. Isso não significa, porém, que Comte defenda um empirismo puro, ou seja, a redução de todo conhecimento à apreensão exclusiva de fatos isolados. A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, entendidos como relações constantes entre fenômenos observáveis.


Quando procura conhecer fenômenos psicológicos, o espírito positivo deve visar às relações imutáveis presentes neles - como quando trata de fenômenos físicos, como o movimento ou a massa; só assim conseguiria realmente explicá-los. Segundo Comte, a procura de leis imutáveis ocorreu pela primeira vez na história quando os antros gregos criaram a astronomia matemática. Na época moderna, o mesmo procedimento invento reaparece em Bacon (1561-1626), Galileu (1564-1642) e René Descartes (1596-1650), os fundadores da filosofia positiva, para Comte.

A filosofia positiva, ao contrário dos estados teológico e metafísico, considera impossível a redução dos fenômenos naturais a um só princípio (Deus, natureza ou outro experiência equivalente). Segundo Comte, a experiência nunca mostra mais do que uma limitada interconexão entre determinados fenômenos. Cada ciência ocupa-se apenas com certo grupo de fenômenos, irredutíveis uns aos outros. A unidade que o conhecimento pode alcançar seria, assim, inteiramente subjetiva, radicando no fato de empregar-se um mesmo método, seja qual for o campo em questão: uma idêntica metodologia produz convergência e homogeneidade de teorias.


Essa unidade do conhecimento não é apenas individual, mas também coletiva; isso faz da filosofia positiva o fundamento intelectual da fraternidade entre os homens, possibilitando a vida prática em comum. A união entre a teoria e a prática seria muito mais íntima no estado positivo do que nos anteriores, pois o conhecimento das relações constantes entre os fenômenos torna possível determinar seu futuro desenvolvimento. O conhecimento positivo caracteriza-se pela previsibilidade: “ver para prever” é o lema da ciência positiva.


A previsibilidade científica permite o desenvolvimento da técnica e, assim, o estado positivo corresponde à indústria, no sentido de exploração da natureza pelo homem. Em suma, o espírito positivo, segundo Comte, instaura as ciências como investigação do real, do certo e indubitável, do precisamente determinado e do útil. Nos domínios do social e do político, o estágio positivo do espírito humano marcaria a passagem do poder espiritual para as mãos dos sábios e cientistas e do poder material para o controle dos industriais.




A Educação Positivista


A sociedade industrial só pode se estruturar se cada indivíduo for educado para contribuir de forma útil em benefício do todo social. Cabe à educação a formação moral dos membros da sociedade para que cheguem a um consenso, com base no qual prevaleceria um estado de harmonia e ordem.

Na juventude, em um estudo que ficou conhecido com "A indústria...", Comte achava que todos deveriam trabalhar produtivamente pelo bem da sociedade. Já as pessoas que nada produzissem deveriam ser julgadas inimigas da sociedade. Por isso, Comte considerava urgente o estabelecimento de um novo poder espiritual, baseado em uma nova moral, que tivesse influência sobre o indivíduos e encaminhasse a sociedade para a "perfeição social possível", tornando cada indivíduo afeito à execução de uma função particular em benefício do todo, harmonizando-se, assim, as desigualdades sociais entre os seres humanos.

Esse novo poder espiritual, a exemplo do exercido pela Igreja Católica na Idade Média, deveria se dirigir a todas as classes sociais para torná-las solitárias na manutenção da ordem social. Porém, diferentemente do poder espiritual católico, baseado na teologia cristã, o novo poder espiritual deveria fundar uma moral inspirada na razão que tornasse possível a submissão pacífica e voluntária dos espíritos, em particular da classe operária. Para desempenhar essa tarefa de reorganização social é que deveria ser reestruturada a educação universal com base no conhecimento positivo fornecido pela ciência sociológica.

É, portanto, o poder espiritual que precisa tornar a ordem social aceita pacificamente pelos indivíduos. Uma "educação geral" deve estar orientada, então, para a construção da sociedade harmônica, desenvolvendo, segundo Comte, uma moralidade natural que ensine a praticar o altruísmo em benefício da harmonia social.

Para os "chefes da indústria", Comte propunha uma "educação especial" que os capacitasse a entender e desempenhar sua função em benefício não de si mesmos, mas da sociedade como um todo. A educação industrial seria fundamental para formar a mentalidade dos empreendedores da indústria com as concepções administrativas mais avançadas e favoráveis ao progresso de toda a sociedade, e não apenas das próprias empresas.

Em sua obra, Comte reserva um lugar importante para o que chama de instrução científica do povo, tendo trabalhado pessoalmente, em 1831, na realização de um curso  de "astronomia popular", destinado a ensinar astronomia aos operários. Sua expectativa era que estes aprendessem o exemplo de uma "ordem real" que comanda o universo e, então, aceitassem também a existência de uma ordem social natural e invariável, que funciona independentemente da intervenção humana e à qual todos os espíritos devem se resignar.


Por meio da educação, Comte pensava em superar o estado de agitação revolucionária existente na Europa, inculcando nos operários uma moral baseada na resignação à conjuntura de desigualdade social. Essa educação serviria tanto para disciplinar quanto para adaptar os trabalhadores às mudanças que os avanços científicos e técnicos impunham ao mundo do trabalho.


Em seu sistema teórico, Comte atribuiu ao poder espiritual exercido pelos sábios a tarefa de regenerar a sociedade por meio da educação e levá-la a uma situação de progresso espiritual e material. É relevante o fato de que, a partir de 1848, já no final da vida, Comte dedicasse esforços à criação de uma "religião da humanidade", que tornaria sagrada e inquestionável a ordem social positivista por ele concebida.

Comte passou a enfatizar também a relevância da educação do sentimento e do bom-senso como esteio da nova ordem social. Enquanto o progresso do espírito humano e da sociedade é concebido como obra da razão científica, a ordem deve ser obra do coração. Comte atribui, então, grande importância à mulher e ao proletariado, que no seu entendimento seriam dotados de uma inclinação natural para o amor e a submissão e, por isso, poderiam realizar o ideal de uma educação sentimental e estética.

A religião da humanidade criada por Comte deveria consolidar essa aliança entre o coração e a inteligência, utilizando-se da educação como veículo que levaria a formação moral às novas gerações. Em outros termos, educação e moral se fundem no sistema comtiano em um processo pedagógico organizado para tornar o indivíduo capaz de controlar o seu egoísmo por meio do progressivo desenvolvimento de suas funções afetivas e intelectuais, podendo, dessa maneira, integrar-se à ordem social positiva.

A influência do pensamento de Auguste Comte no Brasil começou ainda no século XIX. Um dos fundadores da República no país, Benjamim Constant foi também um dos introdutores do estudo sistemático da obra de Comte, que teve repercussão no pensamento e na prática de lideranças políticas, como no caso do presidente Getúlio Vargas, e na formulação de um modelo de organização estatal intervencionista e modernizador.

PILETTI, N; PRAXEDES, W. Sociologia da Educação. São Paulo: Ática, 2010.

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