18 de junho de 2005

II. A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTÍFICA



1. O Renascimento


O Renascimento, talvez mais do que a maioria dos diversos momentos históricos, suscita grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico o momento de ruptura entre o mundo medieval - com suas características de sociedade agrária, teocrática e fundiária - e o mundo moderno urbano, burguês e comercial.

Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados do século XV lançando as bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo contemporâneo. A Europa medieval, relativamente estável e fechada, inicia um processo de abertura e expansão comercial e marítima. A identidade das pessoas, até então baseada no clã e na propriedade fundiária, vai sendo progressivamente substituída pela identidade nacional e pelo individualismo. A mentalidade vai se tornando paulatinamente laica - desligada das questões sagradas e transcendentais -, as preocupações metafísicas vão convivendo com outras mais imediatistas e materiais, centradas principalmente no homem.

Embora as preocupações metafísicas e filosóficas tenham importado ao homem desde a Antigüidade, no Renascimento a nova sociedade que emerge exige a distinção entre conhecimento especulativo e pragmático.


2. Diferentes visões do Renascimento


Alguns historiadores têm uma visão otimista do Renascimento, como a tiveram também aqueles que assim o batizaram, por terem erroneamente considerado a Idade Média como a Idade das Trevas e do obscurantismo. Para eles as mudanças que ocorreram na Europa, principalmente na Itália, e depois na Inglaterra e Alemanha, foram essencialmente positivas e responsáveis pelo desenvolvimento do comércio e da navegação, do contato com outros povos, pela proliferação de obras de arte e de obras filosóficas. Nessa ótica foi o movimento renascentista que promoveu o renascer da cultura e da erudição, o gosto pelo saber, além de tê-los, aos poucos, posto à disposição da população em geral.

Mas há também os historiadores mais pessimistas, que conseguem perceber nessa época um período de grande turbulência social e política. Para essa análise, esses historiadores apoiam-se na falta de unidade política e religiosa, nos grandes conflitos existentes entre as nações, nas guerras intermináveis, nas inquisições e perseguições religiosas, no esforço de conservação de um mundo que agonizava, características mercantes do período. Consideram sintomas de tudo isso os exílios, as condenações e os longos processos eclesiásticos, os grandes genocídios que a Europa promoveu na América e o ressurgimento da escravidão como instituição legal.

De fato, um certo clima de fim de mundo perpassa a produção artística do período, expresso na Divina comédia de Dante Alighieri, no Juízo final de Michelângelo, pintado na Capela Sistina. Um clima de insegurança e instabilidade perpassa todos nessa época de profunda transição.


3. A retomada do espírito especulativo


De qualquer maneira, o Renascimento marca uma nova postura do homem ocidental diante da natureza e do conhecimento. Juntamente com o descrédito na Igreja como instituição e o conseqüente aparecimento de novos credos e seitas - que conclamavam os fiéis a uma leitura interpretativa das escrituras -, o homem renascentista retoma a crença no pensamento especulativo. O conhecimento deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que era antes entre gregos romanos - o resultado de uma bem conduzida atividade mental.

Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade concreta, para o mundo terreno, numa ânsia por conhecê-lo, descrevendo-o, analisando-o, medindo-o, quer com medidas precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana.

“O visível é também inteligível", afirmava Leonardo da Vinci, encantado com as possibilidades de conhecimento pelo do uso dos sentidos.

Por outro lado, a vida terrena adquire cada vez mais importância e com ela a própria história, que passa a ter uma dimensão eminentemente humana. Estimulado pelo individualismo e liberto dos valores que o prendiam irremediavelmente à família e ao clã, o homem já concebe seu papel na história como agente dos acontecimentos. Ele vai aos poucos abandonando a concepção que o tomava por pecador e decaído, um ser em permanente dívida para com Deus, para se tomar, na nova perspectiva, o agente da história.

Shakespeare evoca constantemente em suas peças a tragédia do homem diante de suas opções e sentimentos, enquanto Michelângelo faz quase se encontrarem os dedos de Deus e Adão na cena da Criação. É nesse ambiente de renovação que o pensamento científico tomará novo fôlego e, com ele, o pensamento acerca da vida social.


4. Um novo pensamento social


Num mundo que se torna cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o homem se sente livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivencia. Sente-se livre para analisar essa realidade como algo em si mesmo e não como um castigo que Deus lhe reservou. E, assim como os pintores que se debruçaram nas minúcias das paisagens, na disposição das figuras numa perspectiva geométrica, os filósofos também passam a questionar e dissecar a realidade social. A vida dos homens passa a ser fruto de suas ações e escolhas, e não dos desígnios da justiça divina.

Novas instituições políticas e sociais, estados nacionais, exércitos, levam os homens a repensar a vida social e a história.

Nessa visão humana e especulativa da vida social está o germe do pensamento social moderno que vai expressar na literatura, na pintura, na filosofia e, em especial, na literatura utópica de Thomas Morus (A Utopia), Tommaso Campanella (A cidade do Sol) e Francis Bacon (Nova Atlântida).


5. As Utopias

Como Platão, os filósofos renascentistas tentaram imaginar uma sociedade perfeita. Assim como a Atlântida, surge através da pena de Thomas Morus (1478-1535) uma comunidade onde todas as soluções foram encontradas: a Utopia cujo nome significa “nenhum lugar", onde existe harmonia, equilibrio e virtude.

Desse modo, o pensamento social no Renascimento se expressa na ária de mundos ideais que mostrariam como a realidade deveria ser, sugerindo entretanto que tal sociedade seria construída pelos homens com sua ação e não pela crença ou pela fé.

Utopia é uma ilha onde reina a igualdade e a concórdia. Todos têm sob as mesmas condições de vida e executam em rodízio os mesmos trabalhos. A igualdade e os ideais comunitários são garantidos por uma monarquia constitucional. Cada grupo de 30 famílias escolhe um representante para o conselho que elege o imperador; este permanece até o fim da vida como soberano, sob o olhar vigilante do conselho, que opina sobre cada ato real e pode consultar previamente as famílias, quando considerar necessário.

Além da igualdade quanto ao estilo de vida e ao trabalho, também a distribuição de alimentos se dá de forma comunitária. Não há necessidade pagar por nada, porque há de tudo em profusão, uma vez que a vida é simples, sem luxo e todos trabalham.

Em A Utopia, Thomas Morus expressa os ideais de vida moderada, igualitária e laboriosa, semelhantes aos praticados pelos monges nos mosteiros pré-renascentistas, assim como defende, em termos políticos, a monarquia absoluta.

Seria A Utopia uma obra sociológica? Não no sentido moderno ou científico do conceito, mas como expressão das preocupações do filósofo com a vida social e com os problemas de sua época. Toda a vida ou, como o próprio autor chama, o "regime social" dos utopienses demonstra claramente a preocupação com o estabelecimento de regras sociais mais justas e humanas como resposta às críticas que o autor fez em relação à Inglaterra de seu tempo.

Analisar a sociedade em suas contradições e visualizar uma maneira de resolvê-las, acreditar que da organização das relações políticas, econômicas e sociais derivam a felicidade do homem e seu bem-estar é, seguramente, o germe do pensamento sociológico.

E, refletindo basicamente os anseios de sua época, Thomas Morus considera esse mundo ideal possível, graças ao plano sábio de um monarca absoluto: Utopos, fundador da Utopia.
O monarca esclarecido, justo e sábio é o ideal político do Renascimento, organizador das sociedades perfeitas criadas pela literatura de Thomas Morus e de outros.


6. Maquiavel: o criador da ciência política


Nicolau Maquiavel(1469-1527), pensador fiorentino, escreveu um livro, O príncipe, dedicado a Lourenço de Médici (1449-1492), governador de Florença, protetor das artes e das letras, ele mesmo um ditador. Nesse livro, Maquiavel se propõe a explorar as condições pelas quais um monarca absoluto é capaz de fazer conquistas, reinar e manter seu poder.

Como Thomas Morus, Maquiavel acredita que o poder depende das características pessoais do príncipe - suas virtudes -, das circunstâncias históricas e de fatos que ocorrem independentemente de sua vontade - as oportunidades. Acredita também que do bom exercício da vida política depende a felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo mais realista do que seus companheiros utopistas, Maquiavel faz de O príncipe um manual de ação política, cujo ideal é a conquista e a manutenção do poder. Disserta a respeito das relações que o monarca deve manter com a nobreza, o clero, o povo e seu ministério. Mostra como deve agir o soberano para alcançar e preservar o poder, como manipular a vontade popular e usufruir seus poderes e aliados. Faz uma análise clara das bases em que se assenta o poder político: como conseguir exércitos fiéis e corajosos, como casos inimigos, como recompensar os aliados, como destruir, na memória do povo, a imagem dos antigos líderes.


7. A visão laica da sociedade e do poder

Em relação ao desenvolvimento do pensamento sociológico, Maquiavel teve mais êxito do que Thomas Morus, na medida em que seu objetivo foi conhecer a realidade tal como se lhe apresentava, em vez de imaginar como ela deveria ser.

De qualquer maneira, nas obras de Thomas Morus e de Maquiavel percebemos como as relações sociais passam a constituir objeto de estudo dotado de atributos próprios e deixam de ser, como no passado, conseqüência do acaso ou das qualidades pessoais dos sujeitos. A vida dos homens já aparece, nessas obras, como resultado das condições econômicas e políticas e não de sua fé ou de sua consciência individual.

Além disso, esses filósofos expressam os novos valores burgueses ao colocar os destinos da sociedade e de sua boa organização nas mãos de um indivíduo que se distingue por características pessoais. A monarquia proposta no Renascimento não se assenta na legitimidade do sangue ou da linhagem, na herança ou na tradição, mas na capacidade pessoal do governante e sua sabedoria. A história, tanto como ciência quanto como conhecimento dos fatos, passa a ter um papel relevante nesse novo contexto. Desconhecer a história é desconhecer a evolução e as leis que regem a sociedade onde se vive. Nessa idéia de monarquia se baseia a aliança que a burguesia estabelece com os reis para o surgimento dos estados nacionais, onde a ordem social será tanto mais atingível quanto mais o soberano agir como estadista, pondo em marcha as forças econômicas do capitalismo em formação.

FONTE:
COSTA, Cristina. Sociologia - Introdução à ciência da sociedade. 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2005, pp. 28-35.

Um comentário:

Anônimo disse...

ei mto boa a pesquisa mais queria saber tambem a parte do liberalismo se voce pode colocar. muito obrigado :)